quarta-feira, 2 de maio de 2007

a menina sem nome


A MENINA SEM NOME

Um bom observador é aquele que repara em mínimos acontecimentos, acontecimentos que para a maioria das pessoas atarefadas, apressadas e, conseqüentemente, práticas, são fúteis, insignificantes, dispensáveis, porque o importante é o que está à vista de todos. Aliás, não nos esqueçamos de que vivemos no mundo das aparências. O que adianta reparar em algo que ninguém vê?
Sou observadora. É um defeito, eu sei. Não, não é um defeito sempre, muitas vezes é qualidade também. Meus olhos e pensamentos acabam sendo atraídos para acontecimentos mínimos, que me são lindos ou bizarros, dependendo das circunstâncias. Às vezes, sinto por as pessoas não perceberem o que enxergo e, às vezes, respiro aliviada por não presenciarem certas catástrofes. Não sou vidente, nem médium, o que vejo são coisas que acontecem a olhos nus, no dia-a-dia conturbado de todas as pessoas que correm alucinadamente e não se dão ao trabalho de dedicar um milésimo de tempo e atenção ao que consideram banal.
E assim elas se tornam um pouquinho frias, frias ou muito frias.
Um episódio que ainda está em andamento fez com que eu refletisse sobre o descaso de algumas pessoas perante acontecimentos que parecem banais, porque elas, algumas pessoas, já os estabeleceram assim. Mas não são, não para os observadores.
Trabalho num lugar fechado, a base de ar-condicionado, computadores, telefones, fax, televisores, “modernidade” e jovialidade, muita jovialidade, pois lá não há um só profissional acima dos quarenta anos, todos na flor da idade, potências profissionais, sempre alegres, divertidos, protagonistas de piadas maldosas, algumas muito engraçadas, divulgadores de seus fins de semanas regados a muitas festas, beijos e sexo, propagadores de sua superioridade perante os outros, disputando atenção num ambiente descontraído. Quase uma família, uma união discutível, porém, todos juntos dentro de uma redoma de vidro. Lá fora há mais juventude, no entanto, de outras especialidades.
Uma nova funcionária chegou. Chegou humilde e quieta porque é assim que nos portamos diante de um ambiente desconhecido. Primeiro se reconhece o terreno, depois se briga por espaço. Pois então, assim chegou a menina-sem-nome, também no auge de sua juventude, pacote que contém beleza, inexperiência e dinamismo. Sentou-se do lado de fora da redoma e lá iniciou seus trabalhos. Meu senso de observação indicou-me ela. Portanto, observei que é a única pessoa de seu departamento, mas fica a vista de todos nós. Percebi que na primeira semana era uma pessoa bastante sorridente, a fim de mostrar que o ambiente animado da redoma a agradava, desejava que nós a víssemos contente, simpática. Olhava para dentro das paredes de vidro e nos via sorrir, gargalhar das piadas ditas em meio aos trabalhos do expediente. Quando alguns desses possíveis colegas saíam da redoma e passavam por ela, ela os olhava nos olhos, mas eles simplesmente passavam, conversando, brincando, não a notavam.
Na segunda semana, eu observava com mais interesse aqueles que estavam mais próximos dela, me perguntava se, em algum momento, eles dispensariam a mínima atenção àquela pessoa que, aos poucos, começava a sentir-se incomodada com a indiferença. Não observei nenhum movimento de coleguismo, solidariedade, simpatia... todos mudos passavam por ela, que ainda tentava sorrir “um pouco de atenção, por favor”, ali, parecendo um enfeite de decoração. Nós? Rindo lá dentro da redoma de vidro. Numa sexta-feira, tomou a decisão de ir à padaria tomar um lanche sozinha, já que ninguém a convidava. Eu estava lá e a vi entrar, todos viram quando a menina-fantasma entrou e ninguém a convidou, nem eu, já estávamos de saída. Mas percebi que sua luta é intensa, a vontade de se aproximar sem parecer inconveniente, porém, as portas estavam fechadas.
Na semana passada, segunda-feira, a vi chegar. Sentou-se sem olhar para trás, não queria saber da redoma. Não olhou uma única vez para ninguém que passou por ela: tornou-se indiferente. Desistiu de ser simpática, percebeu que ninguém a notava, não precisavam de sua companhia e muito menos pretendiam ser seus colegas de trabalho. Observando-a sentia a frieza de suas ações, causada pelo desprezo dos demais. Jovens que se acham poderosos demais, mimados, pensam que não precisam ser simpáticos nem solidários, nem bons, nem fraternos, nem nada porque estão protegidos pela redoma, não se misturam. Se ela quisesse algo, ela que fosse até eles, viesse até nós. Pensei cá com meus botões: “por que as pessoas hoje são tão frias, distantes, individualistas... que mal haveria em aproximar-se da menina-sem-nome e se apresentar, convidá-la para um café, dizer que está à disposição se ela encontrar alguma dificuldade?” Há tantas pessoas fora de nossa redoma, muito mais próximas do que nós e ninguém fazia nada por ela que estava na total solidão, insegura por encontrar-se num ambiente tão hostil.
Minha vez de tomar café. Três amigos iriam comigo, saí da redoma primeiro que eles e fui até a mesa em que estava a menina-sozinha. Quando me aproximei ela olhou para mim com certo descaso, ferida pelo nosso descaso.
_ Vamos tomar um café, não quer ir conosco?
Seus olhos brilharam como quem diz “até que enfim” e seu sorriso simpático agradeceu:
_ Obrigada, preciso terminar alguns trabalhos, mas posso ir amanhã.
Esqueci de perguntar seu nome, mas o farei amanhã.

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