quarta-feira, 2 de maio de 2007

BLOQUEIO-CRÔNICO-ESSENCIAL






BLOQUEIO-CRÔNICO-ESSENCIAL

Minha capacidade de concentração está comprometida.
Faz algum tempo que isso acontece...
Há algum tempo, acho que há alguns bons meses, eu não tinha tanta dificuldade em escrever, em colocar no papel peculiaridades do dia-a-dia, encantamentos do meu interior, episódios cômicos e trágicos... Tenho medo dessa falta de concentração, dessa falta do que dizer, dessa sensação de “não sei como dizer”. Juro que não quero me tornar uma analfabeta espiritual, mas, analfabeto é aquele que nunca teve a possibilidade de sair de sua ignorância escrita... eu já escrevi, não digo que bem, nem que ruim, mas aprendi de alguma forma a esboçar pensamentos e emoções numa superfície qualquer. Então o caso não é analfabetismo, talvez eu possa chamar isso de “bloqueio-crônico-essencial”. É uma nova doença inventada por mim, garanto que é grave... porque sou eu quem sinto, portanto, posso diagnosticar o que sinto. Nenhum médico seria capaz de descobrir minha moléstia, só eu, porque sou eu quem sofro de falta de concentração.
Essa falta... de concentração pode ser causada por um vírus feroz, que acomete as pessoas fúteis, imediatistas, preocupadas apenas com posições sociais e financeiras... pessoas... comuns, preocupadas com o mundo “moderno”. O “vírus-da-pessoa-comum” é devastador porque cega de tal maneira que não se assimila a importância das coisas que estão à frente, como o sorriso do dia, a estrela cadente, a nuvem em formas identificáveis, a borboleta que poucas vezes se vê na cidade, o olhar ingênuo de um desconhecido, o agradecimento por uma gentileza, o bom humor, o sentimento puro simplesmente, a canção ao fundo, o bom-dia dito com alegria, o telefonema de um amigo que não se tem notícias há tempos, o intervalo entre uma música e outra, a sonoridade do mar, o fechar os olhos tranqüilamente e sonhar. Estou tão cercada por pessoas “doentes” que acabo me contaminando, aliás, esqueci de dizer: é contagioso. Pessoas comuns são aquelas que levantam pela manhã reclamando por terem de se levantar cedo, tropeçam no chinelo por ainda não terem aberto os olhos, tomam o banho e escovam os dentes sem se olhar profundamente no espelho. Apertam suas gravatas ou calçam seus saltos altos e tomam um café obrigatório e rápido para não perderem tempo. Superficiais. O vírus que corrói a sensibilidade.
Tempo.
Tempo é o elemento-chave. Ultimamente é sobre ele que passo horas a pensar, é sobre ele minhas mais profundas divagações antes de o sono acometer-me e levar-me para o outro lado dele: o sonho. O tempo é minha grande preocupação porque ele ameaça meus projetos de vida rica em experiências... ele é o vilão de toda essa história. Mas depois trato dele com mais meticulosidade porque há muito que falar sobre esse tal... vilão e mocinho.
Agora falo da minha “doença”, a doença que estraçalha as sensações mais prazerosas, porém, as mais surdas que, se não forem devidamente sentidas, passam despercebidas e secam minha alma que precisa ser regada constantemente por sensações que parecem pequenas, mas são capazes de provocar estímulos internos e reflexões sobre mim... é por meio dessas reflexões, que se dão por meio de sensações, que tento me tornar UMA pessoa, não alguma pessoa comum. Cada um de nós precisa ser pessoa especial, ser única para si e para os outros, ser comum é ser como todos os outros, não quero ser como todos os outros, ninguém deveria querer ou se conformar com a condição de “pessoa comum”. A tal doença invade as entranhas dos sentimentos desprovidos de interesse, desprendidos de trocas levianas; essa moléstia ataca os detalhes do cotidiano, detalhes que são esquecidos por serem considerados antipráticos ou desproporcionais ao tempo que vai e não me espera. Lá vem o TEMPO novamente invadir uma conversa que não é dele... ainda não. Deixarei o tempo de lado, pelo menos por um instante, só o momento em que escrevo e, dentro desta escrita, tento angustiosamente buscar explicações ou, quem sabe, a cura para o meu bloqueio-crônico-essencial. Mas o tempo está aqui e ele corre... Não há como fugir.
O mundo me leva a concluir que refletir sobre a profundidade do meu ser é perda de tempo... e tempo é tempo... corre desesperadamente e, se não o acompanho, ele vai e eu fico. Junto a ele vão todos os artifícios que tentam justificar o mundo moderno e, se ele leva tudo com ele, fico à mercê de mim mesma. E é por isso que preciso ser forte, forte o suficiente para agüentar a responsabilidade de ir contra o TEMPO. Mas, não ir contra o tempo todo o tempo, apenas nos momentos em que eu precisar alimentar o espírito e o reeducar, fazer um processo de “reciclagem” para que não me esqueça do que realmente é belo e sincero.
Aos poucos estou conseguindo me concentrar.
Aos poucos volto a ter o domínio das palavras que saem de dentro de mim, despretensiosamente, mas querendo me convencer de que tenho salvação.
O que há de mais especial dentro do meu espírito sofrido por estar sedento de atenção está se manifestando e me dizendo algo muito importante que preciso relatar logo antes que me escapem as palavras que minha alma esboça neste momento: o TEMPO é o causador da minha doença... porém, só ELE é o antídoto contra esta moléstia que tanto me persegue. O TEMPO cura. Todos já ouvimos esse clichê e outros como: dar tempo ao tempo é a melhor maneira para se reconquistar pessoas ou coisas perdidas... inclusive a doçura das palavras benditas, as ternas sensações que podemos sentir todos os dias e não permitimos que se manifestem, os detalhes... a concentração em mim mesma para que, após breves momentos de reflexão, eu me torne um ser racional um pouco melhor... Por que não especial?... Deve-se sempre buscar o essencial.
Após um mergulho no interior que nem eu mesma conheço descobri que todo meu conteúdo adquirido com tanto esforço continua aqui... bem aqui, estava mesmo escondido, empoeirado e esquecido, mas resolvi pedir auxílio ao TEMPO antes que o bloqueio-crônico-essencial tomasse conta definitivamente de mim. Entramos num acordo: ele continua a correr como sempre fez, porém, eu pararei por alguns breves momentos durante todo o meu dia para ouvir o que tenho a dizer e, mesmo que ele não me espere, num futuro não muito distante, em que a idade cronológica e a maturidade do meu espírito me levarão, vou encontrá-lo, quando ele estiver cansado, e ficaremos juntos, pois, quando eu chegar lá saberei que O TEMPO SÓ CORRE PARA AQUELES QUE NÃO O SABEM APROVEITAR... SÓ A MATURIDADE ENSINA QUE O TEMPO SOMOS NÓS... nós somos o tempo que passa e leva consigo os progressos de uma humanidade doente que não sabe olhar para si e não pensa em ser especial, só alguém comum, cheia de valores ilusórios e dispensáveis.
Meu espírito ainda tem muito que aprender. Depois de muito refletir, consegui encontrar uma possível resposta, mas ainda não sei como alcançá-la porque vivo o conflito interior, o conflito entre o que o mundo me pede e o que eu posso dar.
Mas, estou feliz por saber que voltei a me concentrar.
Reconheço que não estou curada e, provavelmente, este tratamento se estenderá por muito tempo. Sinto estar no caminho certo, o caminho que me leva às pessoas especiais e me afasta das
pessoas comuns.

Continua... quando eu tiver um pouco mais de TEMPO...

Ana Paula Enes.
2002
2006



BOM DIA !!!


Espero que o seu dia esteja ensolarado ou, ao menos, o Sol pretenda iluminá-lo após uma noite, talvez, chuvosa e melancólica.

Estou vivendo o Outono, assim como a natureza em seu estado real. Dias frios sem variações climáticas nem emocionais, noites longas sem estrelas e sem sono, com chuvas ocasionais, de quando em quando tempestades no fim de semana deixando-me ilhada... rodeada de pensamentos (...), dúvidas (??!!), por todos os lados. Não gosto do Outono, nem do inverno agindo sobre a natureza nem sobre mim, mas precisamos passar por eles para chegarmos até a Primavera... . São estações e estações passam como tudo passa.

Gosto da Primavera porque sorri, não é indiferente como o Outono e nem frio como o inverno, é o equilíbrio. O Sol nos convida a enxergar as coisas bonitas expostas nos pequenos detalhes que insistimos não ver porque na maior parte do nosso tempo somos Outono ou Inverno...

Peço ao Sol que ilumine muito os meus dias e me dê noites estreladas com Luas enormes para que eu possa continuar enxergando os detalhes das coisas e das pessoas, que eu possa ver com mais nitidez o que muitos não se importam em perceber, que me faça entender o que eu não entendo e queria tanto saber.

Quero muito que o Sol nos faça melhores nesta Primavera. Que aqueça todas as pessoas boas e todos aqueles que gosto e que merecem caminhar guiados pela Luz poderosa do Astro que olha por nós. Que Ele venha radiante na Sua Primavera também e que seque seu espírito ainda molhado pela chuva do Outono e pelo frio do Inverno.

Ana Paula Enes

QUaNdO o BarATO CUSTA caro


Quando o barato custa caro


Quando acordo pela manhã, percebo que mal abri os olhos e já estou atrasada. O dia mal começou, mas já deveria ter feito muitas coisas. Enquanto tomo banho estou pensando no que devo fazer hoje e no que deverei fazer amanhã, mas que pretendo que sejam feitas hoje também, para que amanhã eu faça as coisas de depois de amanhã e assim sucessivamente, e assim até perceber que o domingo terminou e que eu estou atrasada como na semana que passou.
Quando estou trabalhando estou correndo com meus pensamentos desordenados e cheios de obrigações que preciso cumprir sem saber o porquê. O mundo globalizado exige muita dinâmica, algo como, “chupar cana e assobiar ao mesmo tempo”. É ter que saber quanto está a cotação do dólar e pensar na crônica que terei que fazer na prova de Língua Portuguesa à noite. No trânsito, é preciso ouvir a CBN e nos faróis vermelhos ler a Veja e a Folha de São Paulo, é ouvir aulas de inglês no walkman, contanto que esteja num volume razoável para que se possa ouvir as buzinas e xingamentos, é preciso ser multimídia. É também preciso ser atenciosa, alegre e espirituosa, para que não nos tornemos uma máquina. É preciso que se tenha alma.
Tenho saudades da minha infância porque eu sonhava quando adormecia, conversava com meu cachorro, molhava as plantas da minha mãe e observava as estrelas. Maldita hora em que fechei os olhos e pedi com força à Papai do Céu que fizesse com que eu crescesse logo. Agora, as coisas mais simples e gostosas da vida me custam tão caro, e não se trata de dinheiro. Meu problema é tempo!

primeira teoria sobre a origem dos anjos


PRIMEIRA TEORIA SOBRE A ORIGEM DOS ANJOS

Anjos não surgem assim, de uma hora para outra no caminho das pessoas-comuns. Demoram, leva tempo prepará-los a contento, já que precisam atender às muitas necessidades dos que precisam ser iluminados. Missão difícil. Eles são colocados na Terra estrategicamente. Aparentemente, são como nós, pessoas-comuns, de carne e osso. Nascem, crescem, se reproduzem e morrem. Nos intervalos entre um processo e outro eles vão à escola, trabalham, brincam, brigam, sorriem, choram, amam, sentem dor, ficam deprimidos, acham que, assim como nós, não conseguirão chegar a lugar nenhum e, muitas vezes, perguntam-se se realmente merecem a missão e se a estão cumprindo... isso quando sabem qual missão precisam cumprir. Na verdade, muitos nem sabem que são anjos. Eles sofrem como nós, mas possuem uma luz que os distinguem das pessoas-comuns.
Alguns renegam o título, tentam se esquivar dele, mas acabam assumindo a missão quando são colocados diante da pessoa-comum que precisam guiar. Pessoas-comuns são tão frágeis, tão instáveis, mais instáveis do que os próprios anjos que, vez ou outra, querem mandar tudo para o diabo que o carregue. Esperneiam e sentem o peso da responsabilidade de ajudar alguém-comum a encontrar o caminho... eles não sabem nem qual é o caminho deles! Mas eles acabam cumprindo a missão, claro que com remendos, com pausas breves ou longas, deixam a missão de lado por motivos diversos, mas sempre voltam a ela.
Por que sei tanto sobre anjos? Não sei, pressinto, ou melhor, observo-os porque não sou adivinha, sou uma pobre pessoa-comum em busca deles. Alguns surgiram em minha vida e espero que outros venham. Ah! Esqueci: anjos não são fiéis. Não adianta. Por mais que se queira tê-los, chegada a hora, eles se vão... cada missão é uma missão. É preciso treinar para perceber quando um anjo é anjo e não uma pessoa-comum disfarçada de anjo. Tem que olhar no fundo dos olhos, tem que ouvir com paciência, atentar-se às declarações, às opiniões, principalmente, às ações. Anjos, mesmo os rebeldes, são nobres, autênticos, honestos... firmam-se nos olhos da pessoa-comum e sorriem porque não têm nada a esconder, dizem as verdades deles com tanta sinceridade que se tornam verdades absolutas. O poder que os anjos possuem é indescritível e nem eles sabem o quanto são poderosos... e nem devem saber porque, se são tão confusos quanto nós, imagina no que o mundo se transformaria se eles soubessem que possuem o poder de indicar caminhos? Mas, isso é assunto para uma outra teoria.
Continuar...

Ana Paula Enes.

segunda teoria sobre a origem dos anjos


SEGUNDA TEORIA SOBRE A ORIGEM DOS ANJOS


Eles podem andar em bandos.
Voar seria o correto dizer, mas já que eles estão disfarçados de pessoas-comuns, andam, assim como eu... e possuem as mesmas dúvidas e angústias, assim como eu, porque não possuem a consciência de serem anjos. Mas eu sei.
Dou prosseguimento às minhas pesquisas intermináveis sobre a origem deles e sempre me deparo com uma surpresa. A de hoje? Eles, também, andam em bandos.
Por que será? Para não se perderem um dos outros e sentirem-se fracos diante da fragilidade de tantas pessoas-comuns? Ou para indicarem a essas pessoas, numa situação de emergência, o caminho menos tortuoso para se enxergar os detalhes que realmente importam e alcançar o que, de verdade, é relevante na vida de um ser-comum... como eu?
Hoje, sempre em busca de material para meus estudos transcendentais, tive um contato extraordinário com um bando deles, que me cercaram num bar qualquer... É, eles, por estarem disfarçados, disfarçam bem e até tomam cerveja e preparados mundanos e nos convencem de que estão até um pouco altos... e riem e conversam sobre assuntos de pessoas-comuns e declaram que vida de anjo não é fácil, é difícil percorrer o caminho dos seres especiais, porque é exigido deles mais, mais do que é exigido das pessoas-normais. O fardo é grande e eles, muitas vezes, precisam parar, respirar, olhar ao redor e se perguntar porque o fardo é grande já que desejam o mesmo que as pessoas-comuns!!! Normal questionarem... afinal de contas: eles não sabem que são anjos... bando de anjos que se completam... bando de anjos que fazem parte de minha vida-normal... e só eu sei que eles são anjos.
Mas, estou falando sobre a Segunda Teoria Sobre a Origem dos Anjos...
Pelo que pude constatar hoje, posso arriscar que eles nascem de uma bonita amizade, nascem da relação afetuosa entre um grupo de pessoas-especiais que se conhecem, se identificam e trocam experiências e se enriquecem, se enobrecem, se COMPLETAM e tornam-se anjos um dos outros... e de alguns seres-comuns escolhidos. Fui sorteada no dia 1 de agosto de 2001.
Conclusão: os Anjos nascem da Amizade.
Fiquei encantada com minha pesquisa de campo, hoje, 24 de outubro de 2004, quando um bando deles me cercou e entregou-me uma saudação que dizia assim:

“Às vezes nossa vida pode ser
dolorosa, chata, sem sentido,
sem valor, sem razão,
sem perspectiva, sem cor.
Nossa!!!
Parece até
uma novela Mexicana!
Nesses momentos,
Precisamos só de uma coisa:

AMIGOS... e isso não vai faltar nunca!!!”

Anjos guardiões da minha esperança... esperança de que um dia todas as pessoas- comuns, assim como eu, tenham anjos por perto, assim como eu os tenho.

Ana Paula Enes.




O HOMEM QUE SONHOU E MORREU


O HOMEM QUE SONHOU E MORREU

João Carlos sonha com o mar, sonha com uma cadeira de praia e uma cerveja gelada, sonha com a loira deitada para o bronze, com a morena que passa empinada, com o sol que olha para ele...

6horas:

TTTRRRRRRIIIIIIIIIIIIIIIIIIMMMMMMMMMMMM!!!!!!!!!!!!!!!!

João Carlos pula da cama abre o chuveiro e enquanto a água que cai esquenta ele vai até a cafeteira e enquanto a cafeteira faz o café ele vai até o guarda-roupa e escolhe o terno azul marinho e enquanto a roupa está em cima da cama bagunçada ele toma banho e enquanto a chuva do chuveiro cai sobre ele ele se ensaboa e enquanto o sabonete escorrega ele enxágua os cabelos. Sai do banheiro vai até a cafeteira e coloca o café quente na xícara e enquanto esfria ele vai até o quarto vestir o terno azul e enquanto o terno azul se acomoda ao seu corpo quase enxuto ele toma o café quase frio e sai.
6h30: João Carlos sobe no ônibus lotado, vai pendurado na porta, pede licença, não resolve, empurra, então consegue entrar e fica no meio do caminho, no meio do corredor entre uma mulher que está a sua frente e um homem que está a suas costas e, enquanto o ônibus não chega ao seu destino João Carlos sonha: sonha com a praia, a loira, a morena, o mar, o sol, a cerveja e com um carro, um carro amarelo ovo conversível com bancos de couro, ele tem dinheiro, ele pode ter e promete que semana que vem comprará um carro e irá até a praia ver mulheres loiras e morenas passarem por ele com um copo de cerveja gelada nas mãos. O ônibus pára.
João Carlos desce do ônibus e corre, corre até o prédio, enquanto o elevador chega ele pega o jornal, enquanto abre o jornal sobe no elevador, enquanto o elevador chega lê o caderno de economia e enquanto lê várias ordens o esperam e, enquanto cumpre ordens, João Carlos sonha com o mar.
13h: João Carlos sai para almoçar, mas enquanto sai para almoçar João corre para o banco, precisa pagar as prestações da casa, da cama e do som, precisa pagar o curso de inglês, francês e espanhol, precisar quitar as mensalidades do curso básico de vendas, e na fila, sonha. Sonha com as férias que precisa tirar, das festas que precisa ir, das mulheres que precisa conhecer, da família que precisa formar, das alegrias que precisa ter, enquanto sonha a fila anda e João olha para o relógio e enquanto olha para o relógio conclui que não terá tempo de almoçar.
14h: João Carlos volta, entra no prédio e enquanto entra pergunta se tem recado e enquanto recebe a resposta vai ao elevador e enquanto sobe até o terceiro andar João sonha com a vida que não tem. Enquanto corre para lá e para cá João pensa que não tem comida em casa e que precisa comprar, que precisa ter um gato ou um cachorro para não se sentir tão só, que precisa regar as plantas que estão secas e murchas, que precisa, de vez em quando olhar para o alto e admirar as estrelas no céu. João vai embora e enquanto vai embora se programa para o dia seguinte, tudo a mesma coisa, só os sonhos são diferentes. O ônibus está lotado, vai pendurado na porta, pede licença, não adianta, então empurra e consegue ficar no meio do caminho, entre duas mulheres. O ônibus está mais cheio do que pela manhã, mas, mesmo assim, João sonha com uma linda mulher, que o amasse e sentisse tesão por ele, que o estivesse esperando em casa, cheirosa, esperasse seu marido com uma mesa farta, comida boa, muita massa e ela estivesse vestida sensualmente e, logo após o jantar, ela o levasse para o quarto tirasse sua roupa e...
SPLAFT ... – João ficou excitado, a mulher da frente virou-lhe o tapa na cara e ele não entendeu por que apanhou. Apanhou por sonhar???
João indignadíssimo foi até o supermercado e enquanto foi ao supermercado lembrou-se do que tinha que comprar e enquanto ia comprando ia programando seu jantar e enquanto programasse seu jantar iria sonhar. NÃO!!! NÃO IRIA SONHAR, jamais sonharia novamente porque apanhou por sonhar. Mas não se deu conta que sua vida dependia do sonho e quando decidiu não mais sonhar caiu. Caiu no meio do supermercado e todos fizeram uma roda ao seu redor para vê-lo morrer. E morreu.
6horas da manhã: João Carlos foi enterrado porque ninguém tinha tempo a perder. João estava lá, debaixo da terra e eis que alguém muito misterioso escreveu em sua lápide:

“AQUI JAZ UM HOMEM QUE MUITO TRABALHOU E... SONHOU.”


Ana Paula Enes
2001
2006

Jóquei de tartaruga


JÓQUEI DE TARTARUGA

Sexta-feira, último dia útil da semana. O despertador toca como se fosse o primeiro grito do cronômetro, sinal de partida. 18h final da corrida. Em quanto tempo será que conseguirei me maquiar, me vestir, vencer o trânsito, realizar três reuniões, almoçar, arquivar papéis, atender telefonemas, responder telefonemas, pesquisar na internet, ler e-mails, tomar café, fumar, ser sociável, sorrir para os meus colegas, ir ao banheiro, jogar um pouco de água no rosto, retocar a maquiagem, percorrer dois quilômetros em minha cadeira de rodinhas, mais três correndo pelas escadas, ir até a garagem do prédio, entrar no carro, chegar em casa, tomar um banho, tirar a maquiagem? Em quanto tempo? Ora, no mesmo tempo de sempre, das 8h às 18h. A questão é: durante esse tempo conseguirei realizar mais do que realizei ontem? Produzirei mais? Imagina! Para produzir mais teria que trabalhar umas doze horas por dia, no mínimo. Papéis que não acabam mais, um mar deles. Um dia ainda me afogo.
Ainda bem que, em meio à maratona diária, há uma hora, um precioso intervalo no qual são repostas as energias, organizadas as gavetas do pensamento, respira-se, toma-se fôlego para mergulhar novamente no caos das horas vespertinas. Assim como a máquina necessita de um intervalo para resfriar os motores, pessoas como eu e minha amiga, que trabalha e almoça comigo, precisamos abastecer nosso estômago, que se encarrega de levar nutrientes para os membros e idéias para a mente, de preferência idéias mirabolantes, por favor, que façam com que eu saia desse mar de papéis sem me afogar. Na hora do almoço, eu e minha companheira de recreio vamos a um restaurante das redondezas, abarrotado de pessoas que fazem o mesmo que nós, que se entregam ao intervalo para esfriar os “motores”. Falamos amenidades, assuntos que ofusquem a constante pauta do dia: papéis contendo números, balancetes, notas fiscais, pedidos, tabelas, cronogramas, etc, etc, etc.
Fizemos nosso prato no tal restaurante self-service, respeitando a fila indiana e os conselhos dos nutricionistas, que recomendam um prato bastante colorido. Às vezes, o deixo tão colorido que parece uma arte-neo-ciber-contemporânea, nem tenho vontade de comê-lo, só admirar a beleza do contraste entre as cores vivas do pimentão, da cenoura e da beterraba. Nossa mente trabalha em prol do descanso, portanto, conversamos sobre a novela das oito, sobre os programas sensacionalistas de auditório e sobre o garotinho que atende no caixa do restaurante, que, provavelmente, se tornará num homem sensual. Num desses bate-papos soltos, sem a pretensão de se chegar a lugar nenhum, minha amiga comentou:
_ Quem diria, hoje, nós aqui... não faz tanto tempo que eu queria ser médica. Atualmente, mal cuido de mim... não tenho tempo para nada, apenas para pensar quais pepinos terei que resolver amanhã. – seu tom não era amargurado, porém, conformado.
_ Quando eu era pequena pensava em ser professora – disse eu beliscando a sobremesa enquanto observava o trânsito denso na avenida. Filas duplas por causa da saída das crianças da escola em frente ao restaurante. Buzinas. Pessoas circulando apressadamente debaixo de um calor de vinte e nove graus e muita poluição.
_ Hoje, se você pudesse escolher, seria administradora?
_ Não – respondi pensativa, quase exitando, mas tive, de repente, um estralo.
_ O que seria então?
De repente, o estralo me trouxe a lembrança de uma aula que assisti há algum tempo na sala de um amigo que cursava Letras. Aula de Literatura Portuguesa, na qual o professor explicava a influência do boom industrial, tecnológico e científico nas artes, na época em que os artistas buscavam um retorno aflito à simplicidade.
_ Jóquei de Tartaruga.
_ O quê?!
_ Gostaria de ser uma jóquei de tartaruga, colocar nela uma coleira e deixar que me guiasse, na velocidade que ela achasse conveniente, para que eu pudesse observar melhor as coisas que não consigo mais enxergar, para que eu pudesse recuperar o gosto pelo simples... caminhar pelo simples prazer da caminhada, não correr feito uma alucinada, atrasada, a fim de resolver, num período de oito horas, problemas que não se resolverão porque fazem parte de um círculo vicioso e desgastante. Gostaria de andar com minha tartaruga pelas ruas sem me preocupar com a maquiagem, com a roupa, reuniões, papéis, internet, e-mails, telefonemas... horários...
_ Você não acha que já fomos longe demais para voltarmos atrás? – ela perguntou enfaticamente, encarando-me com firmeza, com a colher da sobremesa na mão, como se fosse uma faca rasgando meu devaneio. Claro que ela tem razão.
_ É... acho que você tem razão.
Depois de olharmos no relógio, abandonarmos a mesa e paquerarmos o projeto de homem que nos atendia no caixa, perguntei:
_ E você? O que gostaria de ser se não fosse uma administradora?
_ Dona de casa.
Voltamos para o escritório rindo muito de nossos sonhos frustrados. O mar de papéis nos esperava. Estávamos preparadas para mergulhar neles.


Ana Paula Enes
17/03/2004

EsTAdO DE naTAL




ESTADO DE NATAL

Eu sei que é clichê o que vou dizer, mas não há como negar que ele seja verdadeiro: “Parece que foi ontem!” Estamos, novamente, às vésperas do Natal e ficamos imaginando o que fizemos durante todo o ano para que ele passasse tão depressa. Acho que estivemos muito ocupados, ou foi o tempo que passou mais rápido por nós? Será que os dias não possuem mais 24h? Ou será que os deuses de um Olimpo decadente, que quase não mais se manifestam, se reuniram e decretaram: “Todos os dias serão Natal.” Acho que não, pois, se eles houvessem se reunido e chegado a esse veredicto teríamos recebido um comunicado, o Papa avisaria ou seríamos contatados por telemarketing ou bombardeados por outdoors espalhados por todos os cantos da cidade.
Se todos os dias fossem Natal teríamos que nos organizar diariamente para realizarmos campanha contra a miséria, para que todos os brasileiros tivessem um Natal sem fome, teríamos que fazer caridade todos os dias, como doar um brinquedo ao orfanato, adotar uma criança órfã para passar a ceia de Natal conosco, daríamos caixinha todos os dias ao lixeiro, ao carteiro, ao medidor da água e luz que consumimos, ao entregador das contas de água e luz que pagaremos, teríamos que fazer amigos secretos todos os dias, teríamos que ser mais amorosos e sorridentes todos os dias, mesmo quando acordarmos com dor de cabeça e quando levarmos um empurrão de dentro do trem abarrotado, porque o espírito de Natal nos invadiria todos os dias.

Sabe de uma coisa? Acho que seria o caos. Os deuses, provavelmente, não querem tanto trabalho.

Eles sabem que jamais poderíamos sustentar tamanho espírito natalino. Ainda bem que não houve nenhuma reunião. Ainda bem. Porque de medidas provisórias estamos fartos. Que bom que posso me dar o direito de acordar mal-humorada, às vezes, posso comprar qualquer “brinquedinho” para mim e não para os outros, posso falar um palavrão quando alguém pisar no meu pé quando estiver feito uma sardinha enlatada dentro do trem, poderei economizar um dinheirinho e comprar aquela bolsa magnífica que está na vitrine daquela loja do shopping há meses, terei apenas um amigo secreto por ano, e tomara que seja uma pessoa que mereça o que vou dar de presente, porque não há nada pior do que descobrir que seu amigo secreto é aquele que lhe inferniza o ano inteiro no trabalho.

Mas, só um momento... estou assistindo TV e um comunicado extraordinário acaba de entrar no ar interrompendo a novela:

_ Os deuses do Além se reuniram no início dessa noite e decretaram Estado de Natal por um ano. Porém, segundo o presidente da Assembléia, serão abolidos os amigos secretos, as caixinhas para funcionários públicos, os falsos sorrisos, as caridades obrigatórias e qualquer tipo de consumismo. O que os deuses decidiram é que cada cidadão brasileiro permanecerá em silêncio durante cinco minutos do seu dia e fará a seguinte pergunta a si mesmo: “O que eu fiz para que o meu dia, hoje, tenha sido Natal?” Àqueles que conseguirem fazer do seu dia um dia especial para si e para as pessoas ao seu redor, espontaneamente, obterão felicidade, felicidade esta que não será conquistada por meio de nenhum presente ou caridade forçada, mas sim por meio da paz de espírito e a real consciência de estar sendo útil ao mundo.

O Natal está presente em todos os nossos dias, preserve o seu. Tenha um feliz Natal, todos os dias.

Ana Paula Enes
Fim de 2002

a menina sem nome


A MENINA SEM NOME

Um bom observador é aquele que repara em mínimos acontecimentos, acontecimentos que para a maioria das pessoas atarefadas, apressadas e, conseqüentemente, práticas, são fúteis, insignificantes, dispensáveis, porque o importante é o que está à vista de todos. Aliás, não nos esqueçamos de que vivemos no mundo das aparências. O que adianta reparar em algo que ninguém vê?
Sou observadora. É um defeito, eu sei. Não, não é um defeito sempre, muitas vezes é qualidade também. Meus olhos e pensamentos acabam sendo atraídos para acontecimentos mínimos, que me são lindos ou bizarros, dependendo das circunstâncias. Às vezes, sinto por as pessoas não perceberem o que enxergo e, às vezes, respiro aliviada por não presenciarem certas catástrofes. Não sou vidente, nem médium, o que vejo são coisas que acontecem a olhos nus, no dia-a-dia conturbado de todas as pessoas que correm alucinadamente e não se dão ao trabalho de dedicar um milésimo de tempo e atenção ao que consideram banal.
E assim elas se tornam um pouquinho frias, frias ou muito frias.
Um episódio que ainda está em andamento fez com que eu refletisse sobre o descaso de algumas pessoas perante acontecimentos que parecem banais, porque elas, algumas pessoas, já os estabeleceram assim. Mas não são, não para os observadores.
Trabalho num lugar fechado, a base de ar-condicionado, computadores, telefones, fax, televisores, “modernidade” e jovialidade, muita jovialidade, pois lá não há um só profissional acima dos quarenta anos, todos na flor da idade, potências profissionais, sempre alegres, divertidos, protagonistas de piadas maldosas, algumas muito engraçadas, divulgadores de seus fins de semanas regados a muitas festas, beijos e sexo, propagadores de sua superioridade perante os outros, disputando atenção num ambiente descontraído. Quase uma família, uma união discutível, porém, todos juntos dentro de uma redoma de vidro. Lá fora há mais juventude, no entanto, de outras especialidades.
Uma nova funcionária chegou. Chegou humilde e quieta porque é assim que nos portamos diante de um ambiente desconhecido. Primeiro se reconhece o terreno, depois se briga por espaço. Pois então, assim chegou a menina-sem-nome, também no auge de sua juventude, pacote que contém beleza, inexperiência e dinamismo. Sentou-se do lado de fora da redoma e lá iniciou seus trabalhos. Meu senso de observação indicou-me ela. Portanto, observei que é a única pessoa de seu departamento, mas fica a vista de todos nós. Percebi que na primeira semana era uma pessoa bastante sorridente, a fim de mostrar que o ambiente animado da redoma a agradava, desejava que nós a víssemos contente, simpática. Olhava para dentro das paredes de vidro e nos via sorrir, gargalhar das piadas ditas em meio aos trabalhos do expediente. Quando alguns desses possíveis colegas saíam da redoma e passavam por ela, ela os olhava nos olhos, mas eles simplesmente passavam, conversando, brincando, não a notavam.
Na segunda semana, eu observava com mais interesse aqueles que estavam mais próximos dela, me perguntava se, em algum momento, eles dispensariam a mínima atenção àquela pessoa que, aos poucos, começava a sentir-se incomodada com a indiferença. Não observei nenhum movimento de coleguismo, solidariedade, simpatia... todos mudos passavam por ela, que ainda tentava sorrir “um pouco de atenção, por favor”, ali, parecendo um enfeite de decoração. Nós? Rindo lá dentro da redoma de vidro. Numa sexta-feira, tomou a decisão de ir à padaria tomar um lanche sozinha, já que ninguém a convidava. Eu estava lá e a vi entrar, todos viram quando a menina-fantasma entrou e ninguém a convidou, nem eu, já estávamos de saída. Mas percebi que sua luta é intensa, a vontade de se aproximar sem parecer inconveniente, porém, as portas estavam fechadas.
Na semana passada, segunda-feira, a vi chegar. Sentou-se sem olhar para trás, não queria saber da redoma. Não olhou uma única vez para ninguém que passou por ela: tornou-se indiferente. Desistiu de ser simpática, percebeu que ninguém a notava, não precisavam de sua companhia e muito menos pretendiam ser seus colegas de trabalho. Observando-a sentia a frieza de suas ações, causada pelo desprezo dos demais. Jovens que se acham poderosos demais, mimados, pensam que não precisam ser simpáticos nem solidários, nem bons, nem fraternos, nem nada porque estão protegidos pela redoma, não se misturam. Se ela quisesse algo, ela que fosse até eles, viesse até nós. Pensei cá com meus botões: “por que as pessoas hoje são tão frias, distantes, individualistas... que mal haveria em aproximar-se da menina-sem-nome e se apresentar, convidá-la para um café, dizer que está à disposição se ela encontrar alguma dificuldade?” Há tantas pessoas fora de nossa redoma, muito mais próximas do que nós e ninguém fazia nada por ela que estava na total solidão, insegura por encontrar-se num ambiente tão hostil.
Minha vez de tomar café. Três amigos iriam comigo, saí da redoma primeiro que eles e fui até a mesa em que estava a menina-sozinha. Quando me aproximei ela olhou para mim com certo descaso, ferida pelo nosso descaso.
_ Vamos tomar um café, não quer ir conosco?
Seus olhos brilharam como quem diz “até que enfim” e seu sorriso simpático agradeceu:
_ Obrigada, preciso terminar alguns trabalhos, mas posso ir amanhã.
Esqueci de perguntar seu nome, mas o farei amanhã.

A arte pela arte - Capítulo I


A ARTE PELA ARTE - CAPÍTULO I

Graças aos céus que temos arte, graças aos deuses que a arte existe para ilustrar a vida e dar às linhas “mal ditas”, ao objeto “mal feito”, à pintura “mal acabada”, à atitude menos convencional, o status de belo, original e excêntrico. Que bom que as coisas não são as mesmas para todos nós, que não temos padrões preestabelecidos para os nossos gostos porque, quando algo diferente se põe à frente de nossos olhos e o impacto causa estranheza, chamamos isso de “arte”.
Acho que arte é o meio pelo qual os deuses se manifestam para o bem ou para o mal. É nos olhos comovidos quando lêem um texto, observam uma escultura, apreciam uma pintura, se emocionam ou se indignam diante de uma cena natural ou reproduzida do cotidiano, ou nos ouvidos que escutam pingos d’água que formam melodias melancólicas junto à velocidade audível do vento, ou uma ópera raivosa e violenta que se contrapõe ao batuque alegre de uma bateria de escola de samba; ou ainda, o cheiro da boa culinária, a degustação do vinho envelhecido, a companhia para a dança romântica, a emoção de, às vezes, olhar-se no espelho e achar-se uma obra de arte, porque os deuses, ao mexerem os seus pauzinhos, concluíram que, em meio a tanta dureza, rusticidade e mau humor, deveria haver algo que sensibilizasse, desse prazer e fosse o meio ideal para esquecermos o fútil, para darmos importância ao que realmente interessa: a arte. Arte essa que está dentro de nós, está escondida em nossos cinco sentidos vitais e, basta concentrar-se, basta fazer silêncio e querer que sentimos a arte da vida correr por entre nossas veias.
A arte pode salvar o mundo. Será que alguém já pensou nisso? Talvez se todas as pessoas trabalhassem sua arte não teriam tempo nem disposição de realizar as vontades alheias, cada um criaria a sua arte e a arte salvaria o mundo da futilidade que traz o desejo de poder e a mesquinharia da manipulação. Eu sei que a utopia também é uma forma artística de se idealizar a perfeição. Mas creio que, se arte é sensibilidade, teríamos tempos mais sensíveis e preocupados com o que é belo e transcendental.
A escrita é uma das artes mais belas e completas, capaz de revolucionar, emocionar, enraivecer, motivar. As palavras são poderosíssimas, podem ser usadas para o benefício ou malefício, como toda arte, mas, se lapidadas por artistas bem intencionados tornam-se intermediárias entre o mundo pessoal e íntimo e o mundo externo e observador.
Para algumas pessoas as palavras fluem melhor escritas do que faladas, fluem melhor porque existe o intermediário que leva ao destinatário o que se pretende dizer, ou, às vezes, nem dizer, apenas insinuar. O papel, a tela do computador, o outdoor são alguns desses mensageiros, encarregados de transmitir o recado, a notícia, a propaganda, a arte...
Eu prefiro a escrita. Conjunto de símbolos, aparentemente, frios que traduzem o que vai no íntimo. Transformar pensamentos em algo concreto é fascinante, traduzir parte de intensas emoções equivale a uma bela alquimia. Relatar fatos de maneira clara e objetiva não é para qualquer um, apenas as pessoas sensíveis conseguem fazer da escrita um instrumento de arte e informação, conseguem fazer das Letras um objeto de cultura, oferecendo ao mundo uma parcela de beleza.
As palavras escritas, esse código de comunicação, são para mim essenciais para uma sobrevivência harmoniosa com meu interior; Letras são terapêuticas, fazem com que eu coloque nelas minhas angústias, conflitos e alegrias. Minhas confidentes. Mas, como confidenciar algo às Letras se elas são instrumentos do meu relato? Estão tão entranhadas em mim que quando vêm para o papel já sabem o que desejo dizer, somos tão íntimas e as tenho queridas porque, por meio delas, consigo me encontrar. O meu fascínio por elas, provavelmente, é semelhante ao fascínio do pintor pelas cores, do cantor pela música, do ator pela interpretação... meu fascínio pelas Letras é tão intenso que me sinto artista, uso-as para embelezar meus dias, ocupo-me da arte de arquitetá-las, organizá-las de modo que fiquem belas e que fascinem outras pessoas que as lêem, mas que não as lêem puro e simplesmente e sim as sintam e enxerguem que elas dizem muito mais do que aparentam dizer.
Quando me aprofundei nelas, nas Letras, foi para aprender a usá-las com mais propriedade e para entregar-me de vez ao fascínio que elas exerciam sobre mim, entregar-me, decididamente, ao vício de ler e escrever. Tornei-me lapidadora delas, ou seja, tornei-me revisora, ou seja, tenho a função/prazer de transformar conjunto de Letras que chegam até mim em seu estado bruto em conjuntos claros e belos, cuidando para que as Letras estejam bem ditas, as benditas Letras que traduzem pensamentos, sentimentos e relatam informações. Ainda não sei, em minha modesta experiência, se realizo bem a função de lapidadora de Letras ou não, a única certeza que tenho é a de que sou e serei sempre viciada nelas e na arte de transformá-las em beleza.

Ana Paula Enes.