quarta-feira, 2 de maio de 2007

Jóquei de tartaruga


JÓQUEI DE TARTARUGA

Sexta-feira, último dia útil da semana. O despertador toca como se fosse o primeiro grito do cronômetro, sinal de partida. 18h final da corrida. Em quanto tempo será que conseguirei me maquiar, me vestir, vencer o trânsito, realizar três reuniões, almoçar, arquivar papéis, atender telefonemas, responder telefonemas, pesquisar na internet, ler e-mails, tomar café, fumar, ser sociável, sorrir para os meus colegas, ir ao banheiro, jogar um pouco de água no rosto, retocar a maquiagem, percorrer dois quilômetros em minha cadeira de rodinhas, mais três correndo pelas escadas, ir até a garagem do prédio, entrar no carro, chegar em casa, tomar um banho, tirar a maquiagem? Em quanto tempo? Ora, no mesmo tempo de sempre, das 8h às 18h. A questão é: durante esse tempo conseguirei realizar mais do que realizei ontem? Produzirei mais? Imagina! Para produzir mais teria que trabalhar umas doze horas por dia, no mínimo. Papéis que não acabam mais, um mar deles. Um dia ainda me afogo.
Ainda bem que, em meio à maratona diária, há uma hora, um precioso intervalo no qual são repostas as energias, organizadas as gavetas do pensamento, respira-se, toma-se fôlego para mergulhar novamente no caos das horas vespertinas. Assim como a máquina necessita de um intervalo para resfriar os motores, pessoas como eu e minha amiga, que trabalha e almoça comigo, precisamos abastecer nosso estômago, que se encarrega de levar nutrientes para os membros e idéias para a mente, de preferência idéias mirabolantes, por favor, que façam com que eu saia desse mar de papéis sem me afogar. Na hora do almoço, eu e minha companheira de recreio vamos a um restaurante das redondezas, abarrotado de pessoas que fazem o mesmo que nós, que se entregam ao intervalo para esfriar os “motores”. Falamos amenidades, assuntos que ofusquem a constante pauta do dia: papéis contendo números, balancetes, notas fiscais, pedidos, tabelas, cronogramas, etc, etc, etc.
Fizemos nosso prato no tal restaurante self-service, respeitando a fila indiana e os conselhos dos nutricionistas, que recomendam um prato bastante colorido. Às vezes, o deixo tão colorido que parece uma arte-neo-ciber-contemporânea, nem tenho vontade de comê-lo, só admirar a beleza do contraste entre as cores vivas do pimentão, da cenoura e da beterraba. Nossa mente trabalha em prol do descanso, portanto, conversamos sobre a novela das oito, sobre os programas sensacionalistas de auditório e sobre o garotinho que atende no caixa do restaurante, que, provavelmente, se tornará num homem sensual. Num desses bate-papos soltos, sem a pretensão de se chegar a lugar nenhum, minha amiga comentou:
_ Quem diria, hoje, nós aqui... não faz tanto tempo que eu queria ser médica. Atualmente, mal cuido de mim... não tenho tempo para nada, apenas para pensar quais pepinos terei que resolver amanhã. – seu tom não era amargurado, porém, conformado.
_ Quando eu era pequena pensava em ser professora – disse eu beliscando a sobremesa enquanto observava o trânsito denso na avenida. Filas duplas por causa da saída das crianças da escola em frente ao restaurante. Buzinas. Pessoas circulando apressadamente debaixo de um calor de vinte e nove graus e muita poluição.
_ Hoje, se você pudesse escolher, seria administradora?
_ Não – respondi pensativa, quase exitando, mas tive, de repente, um estralo.
_ O que seria então?
De repente, o estralo me trouxe a lembrança de uma aula que assisti há algum tempo na sala de um amigo que cursava Letras. Aula de Literatura Portuguesa, na qual o professor explicava a influência do boom industrial, tecnológico e científico nas artes, na época em que os artistas buscavam um retorno aflito à simplicidade.
_ Jóquei de Tartaruga.
_ O quê?!
_ Gostaria de ser uma jóquei de tartaruga, colocar nela uma coleira e deixar que me guiasse, na velocidade que ela achasse conveniente, para que eu pudesse observar melhor as coisas que não consigo mais enxergar, para que eu pudesse recuperar o gosto pelo simples... caminhar pelo simples prazer da caminhada, não correr feito uma alucinada, atrasada, a fim de resolver, num período de oito horas, problemas que não se resolverão porque fazem parte de um círculo vicioso e desgastante. Gostaria de andar com minha tartaruga pelas ruas sem me preocupar com a maquiagem, com a roupa, reuniões, papéis, internet, e-mails, telefonemas... horários...
_ Você não acha que já fomos longe demais para voltarmos atrás? – ela perguntou enfaticamente, encarando-me com firmeza, com a colher da sobremesa na mão, como se fosse uma faca rasgando meu devaneio. Claro que ela tem razão.
_ É... acho que você tem razão.
Depois de olharmos no relógio, abandonarmos a mesa e paquerarmos o projeto de homem que nos atendia no caixa, perguntei:
_ E você? O que gostaria de ser se não fosse uma administradora?
_ Dona de casa.
Voltamos para o escritório rindo muito de nossos sonhos frustrados. O mar de papéis nos esperava. Estávamos preparadas para mergulhar neles.


Ana Paula Enes
17/03/2004

3 comentários:

Anônimo disse...

Merecia uma página de Vejinha!!!!

Joaquim Barros da Luz disse...

Boa noite Ana!
Encontrei por acaso o seu blog quando procurava pela milésima vez o autor de "joquei de Tartaruga". Encontrei o teu conto que, por sinal, é fantástico, mas queria saber o nome do autor do poema mencionado pelo nosso professor em sala de aula. Você se lembra? Só consigo me lembrar de Cesário Verde, mas acho que não é ele... Se souber, responda-me, ok? Beijos e boa semana!

Joaquim Barros

Joaquim Barros da Luz disse...

Brilhante Nana Enes! Lembro-me muito bem dessa aula!
Nosso professor era fera mesmo!

Beijos... Joaquim.